Afantasia é uma condição onde a mente tem dificuldade de imaginar imagens mentais de forma clara.
O termo é novo, mas a condição sempre existiu, no livro O Olhar da Mente o neurologista Oliver Sacks narra diversos casos de pacientes com condições neurológicas peculiares. Ele descreve também sua própria condição, uma terrível “visão mental”, o médico não conseguia visualizar absolutamente nada em sua mente, inclusive rostos de pessoas, o que já o colocou em diversos problemas por não conseguir reconhecer conhecidos na rua.
Enquanto isso sua mãe tinha uma imaginação visual fascinante, ela, também médica, conseguia desenhar um esqueleto de um gato de cabeça em diversos ângulos. Dizia que rotacionava o objeto em sua mente e apenas projetava aquilo que via no papel.
O segundo caso parece se assemelhar com a incrível habilidade do ilustrador Kim Jung Gi que faleceu recentemente. Em seus vídeos ele era capaz de ilustrar poses complexas sem nenhum tipo de referência ou rascunho, uma capacidade impressionante que une uma imaginação vivida com anos de prática.
A maçã
A afantasia tem diversos graus, desde o completo nada, até enxergar formas e cores de maneira difusa.
Esse gráfico fez sucesso no Xwitter recentemente, é um exercício pra identificar o seu nível de visão mental. Feche os olhos e tente visualizar uma maçã na sua cabeça, como ela se parece?
Pra mim ela é algo difuso, onde imagino linhas e cores, mas nunca visualizo a maçã por completo e muito menos consigo rotacionar ela, é como se estivesse em um vídeo com uma resolução muito baixa.
Não enxergo a maçã e agora?
Estranhamente eu demorei muitos anos pra perceber meu nível de afantasia. Foi na faculdade quando um dia eu precisava encontrar uma professora, então perguntei pra uma das inspetoras se ela sabia onde estava a professora fulana, ela não reconheceu pelo nome e me pediu pra descrever e eu travei. A professora em questão não tinha nenhuma característica marcante, usava roupas sóbrias e tinha um cabelo normal, sendo assim eu me dei conta de que não fazia ideia de como ela se parecia.
Como isso era possível? Uma professora é alguém que você passa horas olhando o rosto e ainda assim eu não conseguia me lembrar de absolutamente nenhuma característica dela pra descrever. A partir desse dia comecei a prestar atenção e notei que eu realmente não conseguia imaginar imagens vividas e muito menos rostos.
Ainda assim eu trabalho com criatividade. Pode parecer irônico, mas embora o termo “afantasia” remeta a uma falta de imaginação, eu e vários outros artistas trabalham com criação mesmo não tendo imagens mentais claras. Ilustradores, animadores e escultores, existem pessoas com afantasia em todas essas áreas e não são poucas.
Particularmente eu tenho uma teoria sobre isso, sem absolutamente nenhuma comprovação científica, acredito que essa falta de visualização seja justamente o que nos leva pra área de criatividade, nós temos imaginação e muita, mas o fato de não conseguirmos visualizar internamente o que imaginamos nos leva a tentar expressar aquilo de uma maneira visual.
Mas e agora?
O que fazer então quando sua visão mental não funciona? Essa capacidade não é algo que se treina nem se adquire, é apenas uma característica intrínseca. Então o que sobra é se adaptar e passar muita vergonha não reconhecendo pessoas na rua.
Sobre o que fazer quando alguém que você não faz ideia de quem seja te cumprimenta eu não tenho muito o que dizer, infelizmente, mas sobre criatividade posso tentar dar algumas dicas.
Referências referências referências
Usar imagens de referência é o principal artifício pra se criar com afantasia. Todo artista usa referência, até o Kim Jun Gi precisava antes de aprimorar sua técnica. Porém, no nosso caso a referência funciona de uma maneira diferente, enquanto artistas normalmente precisam apenas de fotos de poses simples, quem tem afantasia vai precisar de dezenas de imagens, não apenas pra lembrar como um cachorro se parece, mas pra construir um mood do que se imagina.
Pra isso o Pinterest, ou a ferramenta de busca por imagens que você preferir, é nosso melhor amigo. Através da pesquisa e das imagens relacionadas eu vou montando um painel imagético que constrói o universo que eu estou tentando chegar.
Vou usar de exemplo essa ilustração que fiz recentemente. Eu tinha uma ideia muito vaga do que eu queria falar, algo sobre eletrônicos e natureza. Eu já tenho um estilo pessoal de ilustração (algo que posso fazer um post sobre futuramente) então o ponto aqui é misturar meu estilo com esses conceitos, usando o painel de referências como um guia, até chegar no lugar que eu imagino vagamente na minha cabeça.
Rabiscos são legais também
É provável que se você for fazer aulas de desenho o professor te explique como desenhar uma figura humana através de formas e te oriente a nunca desenhar com traços sobrepostos, que o desenho correto deve ser “limpo”.
Bom, isso não é exatamente verdade, a menos que seu objetivo seja algo acadêmico ou técnico não existe uma regra na forma como se desenha rascunhos, o jeito certo é o que funciona pra você.
Eu passei anos discutindo com professores de desenho que me orientavam a desenhar de maneira limpa e que o contrário era errado. O primeiro professor com o qual eu realmente me identifiquei foi o Hiro Kawahara, também conhecido como o criador das bandejas ilustradas do Mcdonalds. No curso dele de Desenho Intuitivo ele ensina uma técnica de desenho fluida, onde o desenho é construído através de linhas soltas (não confunda com a linha “peluda” são coisas diferentes).
Coincidentemente essa técnica faz muito sentido pra quem tem afantasia, com ela você constrói o desenho em camadas e vai encontrando a forma aos poucos, em um processo mais próximo da escultura do que desenho clássico.
Essas são dicas que eu aprendi nos anos de prática, elas não vão funcionar pra todo mundo, cada pessoa vai desenvolver seus próprios métodos de como lidar com a falta de visão mental. Esse post é mais um desabafo e um incentivo, se as coisas não funcionam pra você como funcionam pra todo mundo, tente adaptar, você pode chegar a lugares muito interessantes.
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